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DESTERRADOS EM NOSSA PRÓPRIA TERRA

Quero falar primeiro dos andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles faziam da ignorância. Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava uma lin- guagem de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventa- vam caminhos.

Manoel de Barros

 

Então Macunaíma deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maa- nape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.

 

Mário de Andrade

 

O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.

 

Guimarães Rosa

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(...) cavaleiros todos somos, mas vai muita diferença de uns a outros; porque os cortesãos, sem sair de seus aposentos, nem dos umbrais da corte, passeiam por todo o mundo, olhando para um mapa, sem lhes custar mealha, nem padecer calor, nem frio, nem fome, nem sede; mas nós outros, os cavaleiros andantes verdadei- ros, ao sol, ao frio, às inclemências do céu, de noite e de dia, a pé e a cavalo, lustramos toda a terra. 

 

Miguel de Cervantes (Dom Quixote)

Nosso Projeto é uma Aventura. Numa Cidade de Desterrados.

 

A motivação vem do estudo de Raízes do Brasil, onde Sérgio Buarque de Holanda constata logo no início de seu famoso ensaio: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”.

 

Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.

 

E a expressão ecoou (e ecoa) ao longo de todo o nosso estudo sobre a história do Brasil, acompanhando-nos em nossas criações que viraram peças, mas, especialmente, em nossas andanças e intervenções revisteiras com a carroça por São Paulo de Piratininga.

 

Esta frase assumiu diversas significações para a Antropofágica. Uma metáfora ativa, onde a palavra “terra” assume vários sentidos: locais, relações com a cidade, com o teatro, com a arte. Vamos às ruas inspirados por João do Rio e seu livra-a-alma-encantadora-das-ruas, onde o ato de flanar indica uma possibilidade diante das ruas. Flanar. Segundo João do Rio:

Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e contar; ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite; meter-se nas rodas da populacha, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha da Saúde depois de ter ouvido, diletante de casaca, aplaudirem o maior tenor do lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja. (Rio, 1908)

 

Estabeleceremos uma rota geográfica na cidade onde realizaremos intervenções. Passeios, estudos, cenas. Um conjunto de materiais para a construção da nova peça. Materiais que contenham, ainda que embrionariamente, esse flanar. A peça, portanto, em nossa concepção, também apresentará esse traço. Fluído e diverso. Escolhemos para isso, como lugar a aportar após nossas andanças e flanações, a feira. Uma feira fantástica, híbrida. Entre feira livre, feira de opinião e parque de diversões. Nosso olhar também se voltará ao estudo do gênero fantástico. Terror, ficção científica, fantasia para atender e entender os jovens. Inclusive os que moram em nós. Em nossa feira, não ha- verá apenas sonâmbulos e mágicos, loucos e monstros à moda Caligari. Irônica e critica- mente, também nos reportaremos às latas. Consciência enlatada: espinafremos.

 

Os elementos sobre os quais nos apoiaremos, apesar de diversos – aventuras, fantástico, feira, consciência enlatada – são complementares; ainda que distantes, dentro da chave rapsódica e ensaística (ou ensaísta) a que nos propomos como princípio organizador da pesquisa, são passíveis de manipulação cênica e de criação teatral. Mario Chamie aponta essa negação da rapsódia aos esquemas fixos e previsíveis. Já Adorno, concebe o gênero ensaio como o “produto bastardo”, híbrido por excelência, caracterizado pela flexibilidade, fragmentação e descompromisso com teorias e dogmas. No entanto, outro traço seu é a maior exposição ao erro. Arrisquemo-nos, portanto. Que venham as contribuições milionárias de todos os erros.

 

A jornada será realizada com a Karroça, as máquinas de leitura, bicicletas e a pé. Cantando, tocando, encenando, improvisando, suando. Compartilhemos. Até a marmita. Flanemos. Pelos cantos de São Paulo de Piratininga, cantemos. A partida iniciará com um tratado poético que será feito da cola- gem dos seguintes textos:

 

Poética como fazer versos – Vladimir Maiakóvisk

Escrava que não é Isaura – Mário de Andrade

Prefácio Interessantíssimo – Mário de Andrade

Manifesto Pau-Brasil – Oswald de Andrade

Manifesto Antropófago – Oswald de Andrade

Manifesto da Fiari – León Trotski / André Breton

Pequeno Organum – Bertolt Brecht

A Condição do Ator – Tadeusz Kantor

A Barraca de Feira – Tadeuzs Kantor

Se não pudermos lutar quixotescamente contra os moinhos de vento, sempre nos restará, por fim, a flanação. Justamente em resistência e em homenagem à nossa veia trabalhadora, aventuremo-nos.

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